miércoles, marzo 7

Rua do Ouvidor


Situava-se após um dos grandes casarões da Rua do Ouvidor. Faixada branca com alguns detalhes amarelos em gesso exposto que remetiam ao período de glamour dos cinemas na Praça da Cinelândia e do Theatro Municipal.

Havia um antigo elevador no prédio, onde era preciso abrir e fechar uma espécie de grade de humor muito manso e que obviamente dependia da necessidade e do “querer sair, querer entrar” para alterar não só a sua própria natureza de grade inerte, porém também a imensa caixa de metal onde ela era acoplada. E se fosse da necessidade e da vontade, todo aquele conjunto de grades mansas, caixa, metal e cabos mover-se-iam pelo espaço, arrancando sons do atrito de sua estrutura com as paredes.

O apartamento em si não se dava a cores vulgares ou gritantes por respeito ao tempo e ao gênio da proprietária. Não existia separação de quarto, cozinha ou banheiro. Era apenas um cômodo adaptado às necessidades do por vir.

As características da senhora eram similares ao espírito da construção, pacato. Com apenas uma diferença capital que os dividia, pois que se não fosse isso, ninguém ousaria dizer ou até mesmo prever uma desconexa distinção entre tijolos pintados e mulher.

O açoite diário tinha início na falta de sono, o que não passava muito das seis e meia da manhã e logo assim proposto pela hora começaria seu cárcere. E chegando ao ponto que interessaria a qualquer passante, caso este ocorrido fosse disseminado por línguas ferozes e humanas.

Fato era que Guilhermina sobrevivia de suas histórias. Não dessas que se vê os pais e as avós contando às crianças antes que o sono venha. Os sonhos e as histórias eram suas verdades inventadas. Sem dúvida que muitos gritariam “mentirosa” e agitariam o dedo enquanto rangessem entre dentes e gritos de histeria por sentirem-se enganados. O irônico era que a história tinha contornos bem distintos do que pregariam os defensores transtornados da suposta farsa.

Expressão fiel da natureza, de um modelo, esta era sua diretriz. A fidelidade de sua criação nunca seguiu pré-determinismos outros, pois o modelo que seguia era o de si mesma. E posto isto como realidade para ela, bastaria para ser intitulada como verdade para si própria, permanecendo assim com sua natureza inalterada. Sendo ela a reprodução fiel de si própria como poderiam acusá-la de falso?

Senhora de seus sonhos e pesadelos, não comportaria segurar lágrima que exigisse descer pelo rosto, caso a história fosse de penar. E não seguraria sorriso ou pensamento, sentimento nenhum seria cerceado. Agora em seu castelo na Ouvidor seria rainha e cuidaria de todos sem distinção. Caso fosse de sua vontade seria grade de ferro, faixada branca ou parede vulgar e a Cinelândia voltaria aos seus dias de glória com cinemas lotados. A temporalidade não existiria, largas avenidas do ontem com bondes misturar-se-iam com senhores do amanhã que aguardam na frente do Municipal de cartola e libretos em riste para vaiar Bidu Sayão em Pelléas et Mélisande . Este era o tamanho de sua solidão, este seria até o fim o tamanho de sua loucura.

Bianca Burnier

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