viernes, marzo 30

A Praça

Um armário de madeira firme e escura, com vidros de aspecto muito limpos, guardavam delicadas porcelanas de pequenos desenhos em azul em seu borde. Ganhara as porcelanas de presente de casamento quando aliviada mudou de ares, trocando o Rio de Janeiro pela capital de São Paulo. O Ano torneava pelo meio da década de sessenta.
Os dias afloravam em ordem tranquila o que fazia jus a sua natureza de esposa. Rotina simples e acomodadiça o que lhe permitia certo espaço de hora para que escapasse da rotina caseira e assim desfrutasse de pequenas epifanias urbanas. Saía de casa no Largo do Arouche, seguia pela Rua Doutor Vieira de Carvalho até a Confeitaria Dulca onde podia descansar de seus pesares diários com pãezinhos e merengues que ela mesma dizia-os ímpares e especiais e por volta das quinze seguia até a Praça da República.

A diversidade de pessoas da praça deixava seu interior em verdadeiro rebuliço. Os sons e movimentos das rodas de capoeira por muitas vezes a faziam imaginar escravos lutando contra seus senhores, rompendo em ritmos de dança ensaiada e teatral seus grilhões por ideais de liberdade. Toda aquela diversidade de cores e formas de pintores e artistas que por vezes faziam suas obras ali mesmo, contrastava com a palidez do seu estado passivo. Os hippies misturados aos senhores de terno, transformavam em poucos minutos, simples pedaços de palha e couro em pequenos mimos e adornos rurais.

Aquelas espécimes eram sua idealização reta do estado de loucura, como se todos armassem um grande circo, e ela como espectadora pálida poderia sentar-se em qualquer banco da praça e romper em curtas palmas a cada ação considerada exótica ao seu cotidiano. Todo este era seu antagonismo, seu contrário, o anseio que tinha em poder ser tudo aquilo, revestia em sua habilidade em ser absolutamente nada.
Em uma dessas “aventuras” vespertinas perdeu-se no transe, somente dando-se conta da hora ao chegar a seu abrigo e avistando o marido. Primeiro- tenente, filho de tradições militares e dono do armário de madeira firme e escura que guardavam as porcelanas brancas e que faziam dissonância com os respingos de sangue em seu uniforme, um baderneiro qualquer que havia surrado por ter gritado alguma coisa contra o governo, este era o homem que a trouxera do Rio de Janeiro para São Paulo.
O vermelho-sangue da farda do marido a fazia lembrar-se das tintas usadas pelos artistas em suas pinturas e de todas as outras sensações e cores que tinha ao sentar-se na praça durante a tarde. Pensava nele como em um dos senhores que insistiam em quebrar o ritmo de dança dos ideais de liberdade dos escravos, hippies e de quem mais quisesse esse tipo de coisa. Ele representava à esperança de tempos melhores, o responsável por corrigir os passos exóticos daqueles espécimes, a confeitaria com merengues divinos, o grilhão que permaneceriam nos pés e a ordem das coisas.

E logo que o viu exausto e de pé esperando por ela, deu saltinhos de felicidade e batidinhas histéricas de palma de mão, correu em sua direção para se desculpar pelas horas. E o abraçou para sentir o cheiro de seu marido e para que também pudesse, dessa forma ver melhor e comparar de perto o que restaram daquelas manchas de sangue seco na farda. E concluiu que eram igualmente bonitas comparadas a porcelana de suas xícaras. E se caso algum artista as usasse em alguma tela em qualquer praça, deveriam emoldurá-la e colocá-las em parede como uma vistosa obra de arte.

No hay comentarios.: