miércoles, junio 6

A Morte




               Havia uma espécie de crina, fios negros e grossos por sobre seu rosto. E por mais que não gostasse de admitir, não havia animal externo algum. Esses pelos longos que envolviam o rosto eram dela.                                   O animal chamado mulher.
               E mesmo que o nome fosse outro e não se visse como animal, sempre despertava com a impressão de que havia alguma ameaça. Aqueles fios negros, o arfar da respiração de “bicho encarando bicho”. Batalha até a morte, você contra você mesmo. E alguma atmosfera estranha de reconhecer-se pela primeira vez, de ser ao contrário.
               Como se acordássemos depois de noites sem dormir e dentro do quarto existisse aquela presença de você mesmo, uma cousa que antes estava interiorizada e agora liberta- se e espera qualquer distração para tocar a sola dos pés, sentir o gosto do lado de fora. Assistir ao espetáculo por outro ângulo.
               E essa criatura disforme que escapa e que com apenas uma sensação invisível de medo e ela está ali, ao nosso lado, dentro do copo d’água, nas lentes dos óculos, nas palmilhas dos sapatos. Está cada vez mais perto de tocar a pele, de reverter todo esse fluxo e fazer promessas. Nos espera sozinhos, com medo também. Não existe nada além dessa sombra.
               Não existimos mais quando a crina está em nosso rosto. Percebemos marcas roxas na pele que não estavam na noite anterior e uma espécie de sangue seco nos lençóis e a irremediável sensação de que a pouquíssimo tempo o desconhecido nos tomava pelo pânico. O fim aproxima-se e aquele invólucro de animal que encara os órgãos do corpo com habilidade cirúrgica rompe-se. Estaríamos prontas.
               Ela posiciona-se bem acima de nós, uma energia com polaridade diferente da pele e que a permite ficar a exatos três palmos por sobre toda a estrutura. Voltamos ao estágio de natureza, perdemos o conflito e ficamos estáticos até tudo terminar. Vagarosamente nos encara, lambe os fluídos dispersos no lençol, os cabelos alcançam o rosto. Pequenas mortes sobre o corpo e o ciclo estaria completo. Agradecemos a agulha enfincada no meio do peito e esperamos ansiosos pelas próximas noites sem dormir.

Bianca Burnier